E se eu estiver errado?
Faz tempo que não ando muito por aqui nas redes sociais. Me deu vontade de escrever algo que venho ruminando há algum tempo. Trata-se de um arquivo pessoal, pensando em voz alta sem nenhum objetivo maior do que não me sentir sozinho num país estrangeiro numa sexta à noite :) Ainda que com muito trabalho a fazer e muito amor em todo o canto.
Quando eu era adolescente e tomei o meu primeiro grande porre, ocorreu algo. Hoje considero absolutamente cedo e não gostaria que meu filho enchesse a cara na idade em que enchi, mas tive a sorte de estar num ambiente seguro, amparado por verdadeiros amigos. E o porre acabou surtindo uma espécie de efeito de 'batismo' - um outro Leandro público surgiu ali, que dava vasão à sua revolta revolucionária e citava em tom de discurso os trechos de suas leituras da época, em livros comprados no sebo da Martins Livreiro.
Eis que a frase desta bebedeira ecoa até hoje quando encontro os amigos daquela época: 'Porcos imperialistas!'. Olham pra mim e riem. Esse era o meu brado contra a invasão norte-americana no Brasil, o patrocínio à ditadura, a invasão cultural. Naquela época, por exemplo, eu não ouvia música em inglês. Antes disso já havia absorvido muito de Beatles, Led Zeppelin e Pink Floyd e seguia absorvendo, mas não queria saber da música das rádios da época, não gostava sequer de música pop em português, por exemplo. Fui um adolescente bastante ranzinza, pra dizer a verdade. Saldei este débito afetivo homenageando o Nirvana em meu primeiro disco (DDA).
Naquele período - aliás bastante anterior à minha maioridade - eu me definia claramente como um revolucionário no sentido estrito do termo: existe uma injustiça e precisamos combate-la com todos os meios. Eu havia lido sobre guerrilhas, captação de recursos através da expropriação (assaltos a banco), sequestro de embaixadores em troca de presos políticos e tudo mais. Todos os meios eram válidos para acabar com a opressao e a existência de exploradores e explorados. Eu costumava dizer que morreria com '50 anos, com um tiro nas costas, numa revolução'. O diário de Che na Bolívia era um livro importante pra mim. Com 12 anos havia lido Guerra de Guerrilhas e seu apêndice 'Reflexões sobre o sistema educacional cubano'. Na infância, lá pelos 9, descobri que a figura que eu via na bandeira de uma torcida organizada no estádio beira-Rio - a Juventude Internacionalista - era um grande Che Guevara, que identifiquei num livro de História, ou no Almanaque Abril, não sei. Fiquei doido com a história da revolução cubana. Eis que a partir dali tratava-se de, basicamente, definir meu perfil revolucionário: comunista, anarquista, leninista, trotskista, malatestiano, etc. Na verdade uma engronha danada.
Mas eis, que em algum momento, já um pouco mais velho, depois de mandar brasa nas passeadas, assembléias, plenárias, comícios, protestos, surge uma pergunta na minha cabeca: 'e se eu estiver errado?' E se eu estivesse errado?
Não se tratava de negar a injustiça, a exploração, a pobreza, a dominação, o imperialismo. Não se tratava de negar as suas causas e as evidências. A minha pergunta - e se eu estiver errado? - se tratava, basicamente, de uma referência ao método revolucionário, digamos.
Aqui a história se impõe: revoluções, via de regra, são capitaneadas por vanguardas. Mesmo que executadas pelas massas. É intrínseco ao ser vanguarda achar-se detentor de uma verdade e um saber que não é compartilhado pela massa, pela população, pelo povo, pelas pessoas, pelos outros, enfim. Existe aparentemente algo messiânico no 'ser revolucionário'. Eu vos darei a verdade e a vida. E uma arrogância tremenda. Um sentimento inexorável de superioridade. Naquela época, embora jovenzito, talvez sequer tivesse a autoconfiança e autoestima suficiente para ter alguma revelação que os outros não tivessem (dei-me conta depois, obviamente). Aliás, boa parte do espanhol que sei foi aprendido de forma autodidata, lendo textos, ouvindo canções e improvisando discursos em minha cabeça de exército de um homem só. E o triunfo, o heroismo, o pulsar da vida se materializavam nas minhas mãos que falavam sozinhas no meio da rua em meio ao mundo paralelo em que me encontrava. Aquilo me nutria para seguir, para ler, para estudar meu violão por horas seguidas.
Num primeio momento, a 'descoberta da verdade' é absolutamente reconfortante. Existe um caminho, temos um plano, vamos executá-lo. Sabemos da dureza da tarefa, vamos convencer as pessoas e mudar o mundo. Acho que a sensação de um convertido à uma igreja pentecostal no Brasil deve ser muito parecida. Por isso, não os condeno, os compreendo e gostaria de tocar nesta energia tão poderosa que nos faz levantar nas manhãs frias e descalças, que nos faz levantar a cabeça em direção ao futuro. Será que conseguiríamos manter esta energia sem ter a necessidade de uma única certeza?
E se eu estiver errado? Posso eu saber dos outros mais do que os outros sabem de si mesmos?
Aviso:
'Nem toda revolução política é uma revolução cultural, mas toda revoluçao cultural é uma revolução política.'
Uma das primeiras fichas que me caiu. Está lá no Palavreio. Ali percebi um caminho. E descobri que fazer música é, mais do que tocar, ser tocado.
E se eu estiver errado? Esta pergunta, confesso, segue me norteando/desnorteando. Ela não me induz nem me obriga a mudar de pensamento. Mas necessariamente me obriga a considerar o outro. O outro real, que não é aquele que habita nossas neuroses, paranóias, traumas, preconceitos. 'Se eu estiver errado?' em sua natureza de pergunta conduz ao diálogo.
E aí, talvez venha a máxima de que várias cabeças pensam melhor do que uma. E não é porque a solução venha a ser a 'mais correta', ou porque alguma estatística garante a melhor probabilidade. Mas é porque é a melhor solução é a mais 'engajada', a mais comprometida, aquela pactuada. Sim. Todos nós já vivemos momentos epifânicos de criação coletiva onde a alegria da solução coletiva se sobrepõe à racionalidade da solução dita 'correta'. É esse coletivo maior que precisamos levar em conta.
E se eu estiver errado?
Desde então, não deixo de dizer nada. Nunca deixei de discordar, de combater, de enfrentar. Sou um baita teimoso. Mas nunca vou deixar de me perguntar: e se eu estiver errado? O problema é que, muitas vezes, a pergunta se dá atrasada. Deveria ter sido feita antes. Errei no tempo, ouvi pouco, ou não fiz minha pergunta ser ouvida pelos outros.
E se nós estivermos errados? Aqui é diferente. Se o 'nós estivermos errados?' vier depois de 'e se eu estiver errado?' já não importa. Se o nosso erro é coletivo, é consensual, o importante é estarmos em paz. A melhor solução não é a solução 'correta' imposta, mas a solução pactuada por todos livremente. O desafio, na verdade, é chegar aí.