A bênção da desilusão
Acabo de ler uma entrevista do querido
Luís Fernando Veríssimo a um jornal brasileiro declarando-se “um esquerdista
desiludido”. Sou um fã enorme do LFV e, mesmo se não fosse, entendo, compreendo, curto e compartilho suas desilusões e perplexidades. Lembro-me rapidamente de suas tirinhas "As Cobras", onde uma delas confessava em meio ao
maravilhamento de uma paisagem: “Meu filho, um dia toda esta perplexidade será
sua”.
Há horas venho pensando sobre essa
questão da desilusão e me dei conta de que nunca vi ou li nada sobre algum “direitista”
desiludido, um liberal desiludido, um nazista desiludido, um monarquista
desiludido, um pastor pentecostal desiludido, um ditador desiludido, um
homofóbico desiludido, um torturador desiludido. Talvez eu precise ler e observar mais.
Morando temporariamente na Inglaterra
– há exato um ano, nunca ouvi alguém desiludido com o partido conservador ou com a monarquia, por
exemplo. Nunca ouvi algo como a “desilusão provocada pelo governo Thatcher”.
Houve desilusão recente com a questão Brexit, por exemplo. Os adeptos da União
Europeia se desiludiram para valer. Quem mais se desiludiu com o Brexit, no
entanto, foram os trabalhistas que estão até agora questionando a liderança do
Corbyn, dito de esquerda. Cameron, conservador, talvez tenha se desiludido com o Brexit ao ponto
de renunciar, mas os conservadores em menos de uma semana estavam com uma nova
primeira ministra, bem coesos e prontinhos para governar. Sem maior alarde ou especulação
sobre suas disputas internas. A troca foi rápida e sem grandes traumas. Os trabalhistas,
os Labours, por outro lado, enfrentam uma rachadura que é exposta todo o dia no
noticiário como uma espécie de reality show até que confirmem ou
desconfirmem sua liderança – o que deve ocorrer na próxima semana. A primeira
coisa, ao se desiludirem com o referendo, por exemplo, foi questionar a
oposição, e não o governo. Aliás, uma das coisas mais interessantes no âmbito
do noticiário político inglês é o fato de a oposição, suas articulações,
fissuras ou realizações, figurarem aparentemente com maior presença no noticiário do
que o próprio governo que, afinal de contas governa e só por isso deveria aparecer
mais nas notícias. Não é curioso?
Outra coisa interessante é que estou
convencido, passando esse tempinho na Inglaterra, de que estou num país
comunista – isso segundo os conceitos propagados pelo senso comum no Brasil.
Aqui em Bath, como em várias regiões do país, todas as casas são iguais: mesma
cor, formato, materiais e dimensões, com pouquíssimas variações que muitas
vezes se resumem meramente às cores das portas das casas. Isso gera um efeito visual
impactante e demonstra a grande regulação do setor. Existe um sistema público
de saúde, o NHS. Existe regulação da mídia. A maior empresa de televisão é
pública, a famosa BBC. Dentre um dos maiores parceiros comerciais está a China
comunista, sem dúvida o mais promissor, embora tenha passado por uma crise
financeira neste ano ligada à bolsa de valores, vai entender. A união civil e a
adoção homoafetiva são permitidas. O aborto é legalizado. A educação básica é
pública. E tem feriados de montão! E tem salário mínimo! Enfim, considerando-se
que toda tentativa de regular a mídia, assim como a de defender a comunicação pública
e os direitos humanos por exemplo, é considerado ‘bandeira de esquerda’ no
Brasil, confesso que ando muito confuso e com uma baita crise de identidade.
Será?
Para deixar bem claro, não estou
comparando duas realidades distintas. Faço de tudo para não cair no vira-latismo, que todos sabemos muito forte.
Não estou dizendo que a Inglaterra é melhor ou pior. Estou apenas pensando
sobre a maneira pela qual como nós vamos construindo nossos conceitos de direita e de esquerda
no Brasil. Escrevo sobre o Brasil e o amo pra valer. Quando ouvimos entidades como a FIESP, a
FIERGS ou a FARSUL falar das maravilhas do liberalismo e livre mercado no
chamado primeiro mundo, precisamos fazer esta discussão com muita consciência
de que esse liberalismo puro e utópico não existe em lugar nenhum deste
planeta. E não tem ninguém desiludido com isto. Essa turma não se desilude.
Ninguém se declarou desiludido quando as invasões e guerras do Iraque, Afeganistão
e Síria não resultaram na eliminação do terrorismo, por exemplo. Ninguém se importa se o liberalismo é uma utopia inatingível.
Democratas desiludidos, republicanos
desiludidos. Nunca ouviremos falar da desilusão do Trump, por exemplo. A
desilusão está destinada às nossas melhores expectativas. A desilusão é um
pós-fato, é uma pós-realização, proveniente de uma tentativa, um erro, uma falha, uma traição. A desilusão é
a anti-convicção por excelência. Entre a desilusão e a convicção, eu fico com a
primeira. Nossa desilusão está comprovada. Nossa desilusão é autêntica. Neste
sentido, preciso confessar uma desilusão bastante particular e pessoal. Estou
desiludido e decepcionado com os poderosos do Brasil: banqueiros, grandes
grupos de comunicação, coronéis, latifundiários, classe política e conglomerados empresariais
que foram extremamente mal-agradecidos com quem não ameaçou em nada seus
privilégios ou sequer fez alguma mudança estrutural profunda na sociedade
brasileira. A expectativa de ganhos futuros como o estratégico Pré-Sal, por
exemplo, revela-se uma boa explicação para a origem dessa minha decepção com
determinados setores pouco adeptos das lides democráticas.
Só para divagar um pouco, muito já
se escreveu sobre democracia como arte, como ópera, por exemplo, onde
precisamos “suspender o descrédito”, ou seja, acreditar na realidade interna do
palco para deixar que a narrativa aconteça. É pura ilusão. É um pacto tácito
entre artista e expectador. Se não houver esse pacto, não há espetáculo. E
sabemos o quão essencial para nossas vidas é o espetáculo. Paradoxalmente talvez
o grande problema contemporâneo seja justamente a espetacularização, ou seja, quando todos estão em cima do palco atuando uns para os outros e não há mais a quem
iludir. Não tem como ter pacto de confiança se todos estão no palco ao mesmo tempo disputando as atenções. Sem
pacto não há palco, sem palco não há pacto. Isso é claro numa democracia representativa
tradicional, ocidental, careta até, onde papéis e trabalhos são divididos e
fragmentados. Na farsa da democracia, setores romperam o pacto e não respeitaram
as regras e convenções mais elementares do espetáculo. Havemos de experimentar um novo pacto
e redefinir um novo espetáculo. Havemos de reconhecer que não atuamos todos no
primeiro plano o tempo todo. É necessária a diversidade para a narrativa. Não é
o caso de ser decorativo, mas contracenar e “dar o foco” àqueles que, através
da ilusão eleitoral, foram apontados como atores principais até o fim do ato.
Novo ato, novos atores, nova série somente como nova eleição, digo, seleção de
elenco. No final das contas, enquanto os desiludidos lamentam, os convictos governam.
Temos republicanos desiludidos, democratas
desiludidos, humanistas desiludidos, esquerdistas desiludidos, ativistas
desiludidos. Não nos falta a desilusão, desilusão, desilusão danço eu, dança
você na dança da solidão. Grande Paulinho da Viola, que cantou nosso hino na
Olimpíada com voz sábia, sóbria ao mesmo tempo mágica e magistral. Quer palavra
mais linda de cantar? Desilusão é uma palavra linda de cantar: cheia de
sílabas, lalação, sibilação, aliteração, ressonância e nasalidade. É elegante,
não é explosiva. Todos deveríamos sentir desilusão um dia. Infeliz daquele que nunca sentiu desilusão.
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