DOUTORADO

sábado, setembro 17

A bênção da desilusão

A bênção da desilusão


 Para Luís Fernando Veríssimo

Acabo de ler uma entrevista do querido Luís Fernando Veríssimo a um jornal brasileiro declarando-se “um esquerdista desiludido”. Sou um fã enorme do LFV e, mesmo se não fosse, entendo, compreendo, curto e compartilho suas desilusões e perplexidades. Lembro-me rapidamente de suas tirinhas "As Cobras", onde uma delas confessava em meio ao maravilhamento de uma paisagem: “Meu filho, um dia toda esta perplexidade será sua”.

Há horas venho pensando sobre essa questão da desilusão e me dei conta de que nunca vi ou li nada sobre algum “direitista” desiludido, um liberal desiludido, um nazista desiludido, um monarquista desiludido, um pastor pentecostal desiludido, um ditador desiludido, um homofóbico desiludido, um torturador desiludido. Talvez eu precise ler e observar mais.

Morando temporariamente na Inglaterra – há exato um ano, nunca ouvi alguém desiludido com o partido conservador ou com a monarquia, por exemplo. Nunca ouvi algo como a “desilusão provocada pelo governo Thatcher”. Houve desilusão recente com a questão Brexit, por exemplo. Os adeptos da União Europeia se desiludiram para valer. Quem mais se desiludiu com o Brexit, no entanto, foram os trabalhistas que estão até agora questionando a liderança do Corbyn, dito de esquerda. Cameron, conservador, talvez tenha se desiludido com o Brexit ao ponto de renunciar, mas os conservadores em menos de uma semana estavam com uma nova primeira ministra, bem coesos e prontinhos para governar. Sem maior alarde ou especulação sobre suas disputas internas. A troca foi rápida e sem grandes traumas. Os trabalhistas, os Labours, por outro lado, enfrentam uma rachadura que é exposta todo o dia no noticiário como uma espécie de reality show até que confirmem ou desconfirmem sua liderança – o que deve ocorrer na próxima semana. A primeira coisa, ao se desiludirem com o referendo, por exemplo, foi questionar a oposição, e não o governo. Aliás, uma das coisas mais interessantes no âmbito do noticiário político inglês é o fato de a oposição, suas articulações, fissuras ou realizações, figurarem aparentemente com maior presença no noticiário do que o próprio governo que, afinal de contas governa e só por isso deveria aparecer mais nas notícias. Não é curioso?

Outra coisa interessante é que estou convencido, passando esse tempinho na Inglaterra, de que estou num país comunista – isso segundo os conceitos propagados pelo senso comum no Brasil. Aqui em Bath, como em várias regiões do país, todas as casas são iguais: mesma cor, formato, materiais e dimensões, com pouquíssimas variações que muitas vezes se resumem meramente às cores das portas das casas. Isso gera um efeito visual impactante e demonstra a grande regulação do setor. Existe um sistema público de saúde, o NHS. Existe regulação da mídia. A maior empresa de televisão é pública, a famosa BBC. Dentre um dos maiores parceiros comerciais está a China comunista, sem dúvida o mais promissor, embora tenha passado por uma crise financeira neste ano ligada à bolsa de valores, vai entender. A união civil e a adoção homoafetiva são permitidas. O aborto é legalizado. A educação básica é pública. E tem feriados de montão! E tem salário mínimo! Enfim, considerando-se que toda tentativa de regular a mídia, assim como a de defender a comunicação pública e os direitos humanos por exemplo, é considerado ‘bandeira de esquerda’ no Brasil, confesso que ando muito confuso e com uma baita crise de identidade. Será?


Para deixar bem claro, não estou comparando duas realidades distintas. Faço de tudo para não cair no vira-latismo, que todos sabemos muito forte. Não estou dizendo que a Inglaterra é melhor ou pior. Estou apenas pensando sobre a maneira pela qual como nós vamos construindo nossos conceitos de direita e de esquerda no Brasil. Escrevo sobre o Brasil e o amo pra valer. Quando ouvimos entidades como a FIESP, a FIERGS ou a FARSUL falar das maravilhas do liberalismo e livre mercado no chamado primeiro mundo, precisamos fazer esta discussão com muita consciência de que esse liberalismo puro e utópico não existe em lugar nenhum deste planeta. E não tem ninguém desiludido com isto. Essa turma não se desilude. Ninguém se declarou desiludido quando as invasões e guerras do Iraque, Afeganistão e Síria não resultaram na eliminação do terrorismo, por exemplo. Ninguém se importa se o liberalismo é uma utopia inatingível.

Democratas desiludidos, republicanos desiludidos. Nunca ouviremos falar da desilusão do Trump, por exemplo. A desilusão está destinada às nossas melhores expectativas. A desilusão é um pós-fato, é uma pós-realização, proveniente de uma tentativa, um erro, uma falha, uma traição. A desilusão é a anti-convicção por excelência. Entre a desilusão e a convicção, eu fico com a primeira. Nossa desilusão está comprovada. Nossa desilusão é autêntica. Neste sentido, preciso confessar uma desilusão bastante particular e pessoal. Estou desiludido e decepcionado com os poderosos do Brasil: banqueiros, grandes grupos de comunicação, coronéis, latifundiários, classe política e conglomerados empresariais que foram extremamente mal-agradecidos com quem não ameaçou em nada seus privilégios ou sequer fez alguma mudança estrutural profunda na sociedade brasileira. A expectativa de ganhos futuros como o estratégico Pré-Sal, por exemplo, revela-se uma boa explicação para a origem dessa minha decepção com determinados setores pouco adeptos das lides democráticas.

Só para divagar um pouco, muito já se escreveu sobre democracia como arte, como ópera, por exemplo, onde precisamos “suspender o descrédito”, ou seja, acreditar na realidade interna do palco para deixar que a narrativa aconteça. É pura ilusão. É um pacto tácito entre artista e expectador. Se não houver esse pacto, não há espetáculo. E sabemos o quão essencial para nossas vidas é o espetáculo. Paradoxalmente talvez o grande problema contemporâneo seja justamente a espetacularização, ou seja, quando todos estão em cima do palco atuando uns para os outros e não há mais a quem iludir. Não tem como ter pacto de confiança se todos estão no palco ao mesmo tempo disputando as atenções. Sem pacto não há palco, sem palco não há pacto. Isso é claro numa democracia representativa tradicional, ocidental, careta até, onde papéis e trabalhos são divididos e fragmentados. Na farsa da democracia, setores romperam o pacto e não respeitaram as regras e convenções mais elementares do espetáculo. Havemos de experimentar um novo pacto e redefinir um novo espetáculo. Havemos de reconhecer que não atuamos todos no primeiro plano o tempo todo. É necessária a diversidade para a narrativa. Não é o caso de ser decorativo, mas contracenar e “dar o foco” àqueles que, através da ilusão eleitoral, foram apontados como atores principais até o fim do ato. Novo ato, novos atores, nova série somente como nova eleição, digo, seleção de elenco. No final das contas, enquanto os desiludidos lamentam, os convictos governam.

Temos republicanos desiludidos, democratas desiludidos, humanistas desiludidos, esquerdistas desiludidos, ativistas desiludidos. Não nos falta a desilusão, desilusão, desilusão danço eu, dança você na dança da solidão. Grande Paulinho da Viola, que cantou nosso hino na Olimpíada com voz sábia, sóbria ao mesmo tempo mágica e magistral. Quer palavra mais linda de cantar? Desilusão é uma palavra linda de cantar: cheia de sílabas, lalação, sibilação, aliteração, ressonância e nasalidade. É elegante, não é explosiva. Todos deveríamos sentir desilusão um dia. Infeliz daquele que nunca sentiu desilusão.




Leandro Maia
Cancionista e professor

Nenhum comentário: